Política do coração
Dom Walmor Oliveira de Azevedo - Arcebispo
de Belo Horizonte (MG)
O
Papa Francisco, na sua Carta Encíclica sobre o amor do coração de Jesus, lembra
que é necessário que todas as ações estejam sob o “controle político” do
coração, claro antídoto contra as agressividades e os desejos obsessivos. O
Pontífice assinala que a desvalorização do coração distancia o ser humano do
amor e das respostas que a inteligência, por si, não pode conceber,
inviabilizando avanços, obscurecendo o sentido de gratidão, fomentando
inimizades e disputas fratricidas. Para ilustrar seus argumentos, o Papa
Francisco faz referência a um personagem chamado Stavroguine, de um romance de
Dostoievski, apontado como a “encarnação do mal”. Sem coração, o personagem é
caracterizado por um espírito frio e vazio, intoxicado por maldades, rancores,
ressentimentos e ingratidão. Assim, Stavroguine apenas consegue alimentar
decepções e entrincheirar inimigos. Contrapondo-se à situação ilustrada pelo
romance de Dostoievski, a Carta Encíclica do Papa Francisco ensina que não é
suficiente ao ser humano a habilidade para lidar com a política em seu sentido
mais amplo, nobre e indispensável. É ainda mais insuficiente dedicar-se apenas
à política partidária. Torna-se urgente exercer a política do coração –
buscando superar uma hegemonia que neutraliza o próprio coração.
Cada
um é o coração que possui. O coração molda a identidade espiritual e alimenta a
comunhão com o semelhante, capacitando o ser humano para estabelecer bons
relacionamentos, livres de preconceitos e discriminações. É comum encontrar
pessoas inteligentes, que se expressam de forma articulada e até encantadora,
que dominam muitos assuntos, mas têm um coração apequenado, onde não cabe a
gratidão, incapaz de ler adequadamente a realidade, contaminado por disputas e
friezas que envolvem, principalmente, aqueles que consideram apenas o próprio
ponto de vista. É preciso aprender a conhecer a realidade, a lidar com as
diferentes circunstâncias da vida, a partir do coração. Merece destaque a
referência que o Papa Francisco faz ao filósofo Heidegger, para quem a
filosofia não começa com um conceito puro ou com uma certeza, mas com uma
comoção: “O pensamento deve ser comovido antes de se trabalhar com conceitos,
ou enquanto se trabalha com eles. Sem a comoção, o pensamento não pode começar.
É a comoção que primeiramente dá o que pensar e perguntar. A filosofia ocorre
sempre em uma tonalidade afetiva fundamental”.
O
coração guarda a tonalidade afetiva fundamental do ser humano e pode
endurecer-se a partir de determinados posicionamentos e escolhas. Perder a
ternura é um grande risco que pode conduzir ao fracasso, à ilusão de ser dono
da razão, justificando maldades, gestando insolentes convictos que acabam se
tornando figuras indesejadas em diferentes grupos. O coração é a instância
geradora e mantenedora de vínculos autênticos, com força para demolir
personalismos e individualismos, com propriedades para se contrapor aos
radicalismos. O Papa Francisco adverte que uma sociedade dominada pelo
narcisismo é “anticoração”. “Anticoração” é a pessoa que se pauta pelo rancor e
disputas, argumentando com o semelhante apenas para impor a sua razão, cego na
consideração de outras perspectivas importantes, defendendo apenas o que
alicerça o seu narcisismo. Com facilidade, descarta o semelhante, ou o trata
como adversário. Assim, prejudica a edificação de relações saudáveis, marcadas
pela gratidão e nobres gestos, por sentido adequado de cooperação e perdão.
Aqueles que não têm coração padecem de um esvaziamento espiritual, incapacitando-se
para o acolhimento de Deus e de sua vontade. Deixam-se dominar pela hegemonia
da própria vontade. Um comprometimento perigoso e desolador pela desvinculação
entre a valorização do próprio ser e a abertura aos outros, fragilizando o
encontro pessoal consigo mesmo e a capacidade para se doar ao semelhante.
Corações apequenados, com territórios estreitos, alimentam ódios,
entrincheiram-se em frentes de violência.
Quando
se adquire a capacidade de reconhecer o semelhante alcança-se a verdadeira autenticidade.
E somente encontra o semelhante aquele que é capaz de aceitar e reconhecer a
própria identidade. Lembra o Papa Francisco que na era da inteligência
artificial não se pode esquecer a poesia e o amor como caminhos e providências
para salvar o ser humano. Perdida, pois, a ternura, perde-se também o sentido e
a graça sagrada do viver. Tudo está unificado no coração, que pode ser a sede
do amor com todos os seus componentes espirituais, psíquicos e físicos, ensina
o Papa. Sem coração cresce a indiferença, atrasam-se as reconciliações,
proliferam-se as inimizades, agravam-se as grandes e pequenas guerras,
sacrificada é a paz, dá-se lugar a angústias, medos e ódios.
A
“política do coração” é o amor. O amor é o princípio basilar no “controle
político” do coração. Somente amando, até mesmo os adversários, é que cada
pessoa consegue compreender a razão de se viver. Aprender e dar “controle
político” ao coração, em vista de mudar o mundo, é importante. Precede a essa
atitude perguntar-se e responder, sinceramente, sem camuflagens, sem argumentos
de justificação de si ou para autocomiseração: “Tenho coração?” A resposta não
pode ser simplista, com um “sim” ou com um “não”. Requer uma clarividente
consciência de si, partindo da consideração do semelhante, identificando a
disposição de superar preconceitos e não se deixar reger por mágoas. Dispor-se
a contribuir sempre e fazer valer o amor que fecunda novos tempos, arquiteta
cenários de igualdade, diálogos construtivos da paz. Todos possam se perguntar
– “Tenho coração?” – e, na interioridade, procurar responder, de forma a
reavaliar se os próprios modos de pensar e de agir fundamentam-se nos
parâmetros do amor.