Forasteiro entre os forasteiros
No episódio evangélico dos discípulos de
Emaús (Lc 24, 13-35), subitamente um forasteiro põe-se a marchar com os dois
fugitivos. Estes escapavam da cidade de Jerusalém, onde se dera a tragédia da
cruz. Ali, o Líder havia sido condenado à execução reservada aos piores
malfeitores, e logo suspenso no madeiro maldito, com sofrimento e morte
atrozes. Por lá, não obstante os festejos da Páscoa, as coisas continuavam
sombrias. Se o próprio Mestre tivera esse terrível fim, o que poderia ocorrer
aos seus seguidores mais próximos? Melhor não esperar pela sorte, mas buscar
refúgio em Emaús. No caminho, portanto, empreendiam uma travessia de medo e frustração,
de fracasso e impotência. Andavam pensativos e cabisbaixos, certamente abatidos
pelo trauma da dispersão, estupefatos pela traição e pelo desfecho final.
Quantos migrantes – fugitivos e
refugiados da violência política, étnica, religiosa e ideológica; das mudanças
climáticas cada vez mais extremadas e catastróficas, da pobreza, da miséria e
fome – enfrentam atualmente a mesma travessia! São multidões provenientes da
Síria, da Venezuela, da Ucrânia, do Afeganistão, do Sudão do Sul, da Etiópia,
da Nigéria, de Moçambique, de Mianmar, do Haiti, da Palestina; de vários outros
países de América Latina e Caribe, África e Ásia, para citar somente alguns
lugares conflagrados. Em grande parte, seguem sem raiz, sem pátria e sem rumo, incertos,
inseguros e inquietos quanto ao futuro. Passam a vagar pelos mares e desertos,
pelas florestas e fronteiras, batendo de porta em porta, sendo recebidos em
troca com preconceito, discriminação, hostilidade, xenofobia e rechaço.
Voltando ao texto bíblico, o forasteiro
revela-se curioso no confronto com os dois fugitivos. Por que estão tristes, o
que aconteceu, para onde estão indo, o que vão falando pelo caminho?
Interessa-lhe o estado de seus rostos, o conteúdo de suas palavras, o rumo de
seus passos. Na qualidade de desconhecido e estranho, reserva-se o direito de
interrogar. Os fugitivos, encontrando um ouvido atento, põem-se então a narrar
os recentes acontecimentos que levaram à morte o Nazareno. Inicia-se um diálogo
entre os fatos brutos da vida cotidiana e as palavras da Sagrada Escritura.
Coisa surpreendente: primeiro fala a experiência vivida, depois é que os
relatos bíblicos entram em cena. Talvez porque a existência humana, com seus
sonhos e esperanças, suas lutas e embates, derrotas e vitórias, já se encontre impregnada
das sementes da Palavra de Deus. Disso decorre que esta última só venha a ser
consultada e esclarecida na medida em que possa para trazer alguma luz e
sentido aos fatos que tanto preocupam os fugitivos.
Fica evidente a metodologia do
forasteiro. Antes de mais nada, oferecer tempo e espaço para o desabafo de quem
foi golpeado pelos embates da existência e se encontra prostrado. Daí seu
cuidado, sua sensibilidade, sua atenção e sua solidariedade. Nessas situações-limite
da existência humana (separação, doença, fracasso, morte) nem sempre é fácil
encontrar alguém predisposto a uma escuta qualificada. Escuta que não se
realiza com os ouvidos biológicos, mas com o coração. É assim que, no encontro
e sempre a caminho, o forasteiro prepara um cenário para que aqueles cujas
pernas foram quebradas pelas adversidades da vida possam voltar a ser sujeitos
e protagonistas do próprio destino. Ele por seu lado, nesse cenário, contribui
com a sabedoria e a orientação dos livros sagrados. Dessa forma, vida e Bíblia,
reciprocamente iluminadas, podem dar-se as mãos para enfrentar os próximos
movimentos.
Com isso, o forasteiro transfigura-se em
irmão. Torna-se próximo de quem está necessitado, na exata medida em que se
aproxima, caminha ao lado dos feridos, e se dispõe à cura e ao cuidado. Por
fim, sendo agora um irmão, pode ser convidado à casa: “fica conosco, pois cai a
tarde e o dia já declina”. Efetivamente, o convite a entrar em casa exige um
grau acentuado de relacionamento. Ninguém compartilha sua privacidade familiar
com estranhos, a não ser depois de certa intimidade. Mas o forasteiro
convertido em irmão vai além! Torna-se também anfitrião. De fato, tendo sido
convidado igualmente à mesa, “tomou o pão, abençoou-o, depois partiu-o e o
distribuiu a eles”.
Nisso revela imediatamente sua
identidade: é o Senhor! O mesmo Senhor que hoje se faz forasteiro, irmão e
anfitrião de cada migrante ou refugiado que se põe a caminho. O encontro com
ele transforma a travessia da fuga e do medo em retorno alegre e entusiasmado.
O caminho é o mesmo, mas a esperança de renovou. “Não ardia o nosso coração
quando ele nos explicava as escrituras”? Ao final resulta que dois discípulos
medrosos se convertem em dois missionários ardorosos!
Pe.
Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – São Paulo, 07/06/2024