Artigo

Dar de comer a quem tem fome

Cardeal Odilo Pedro Scherer – arcebispo de São Paulo

Partilhar a comida com os outros sempre foi considerado um gesto humano muito significativo, expressando fraternidade, amizade, generosidade e sensibilidade diante da situação de fome do próximo. Dar de comer a quem tem fome é um dos gestos mais belos de humanidade. E seria desumano não se importar com a fome do irmão, ainda que seja um desconhecido, um que não pensa como nós ou alguém que não simpatiza conosco. A partilha do alimento abre os corações, aproxima as pessoas e cria comunhão.

Para os cristãos, a partilha do alimento com quem tem fome é parte da caridade aprendida de Jesus, que teve pena da multidão faminta e fez o milagre da partilha do pão e do peixe com uma multidão de pessoas (cf. Mt 14,16-21). E mostrou o que aconteceu com o banqueteador, que não se compadeceu do pobre Lázaro e se negou a partilhar a comida com ele (cf. Lc 16,20-31). Finalmente, Jesus preveniu a todos nós sobre o que pode acontecer quando recusamos saciar a fome de quem anda sem alimento: “Tive fome, e não me destes de comer… Agora, ide para longe de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos. Pois tive fome, e não me destes de comer…”. E o supremo Juiz dirá o motivo de tão grave sentença: “O que não fizestes a um desses pequeninos, foi a mim que não fizestes” (cf. Mt 25,41-46).

Mesmo bem antes de Jesus Cristo, o povo de Deus já conhecia essa recomendação: “Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber” (Pr 25,21). O profeta Isaías usa palavras duras contra o governante da época, que não se importava com a fome do povo: “Pois o insensato só fala tolices e seu coração trama a maldade, dizendo disparates contra o Senhor. Ele deixa o faminto sem comer e o sedento sem beber” (Is 32,6). A recomendação para dar de comer a quem tem fome faz parte de todas as religiões e culturas humanizadas, que tenham superado a “lei da selva”, da prepotência e insensibilidade do mais forte sobre o mais fraco.

Para nós, cristãos, partilhar o alimento com quem tem fome é uma decorrência necessária da nossa fé em Deus e do primeiro mandamento da Lei de Deus. Quem reconhece a Deus e o adora “em espírito e verdade”, também reconhece o próximo como um irmão. Amor a Deus e amor ao próximo vão sempre juntos e não se pode separar esses dois amores: “Se alguém tem bens neste mundo e vê o seu irmão em necessidade, mas diante dele fecha o coração, como pode o amor de Deus permanecer nele?” (1Jo 3,17). São João denuncia a falsidade de um pretenso amor a Deus, sem amor ao próximo: “Se alguém disser, ‘amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Quem ama a Deus, ame também o seu irmão” (1Jo 4,20-21).

Desejo manifestar meu apoio e apreço a todos aqueles que se preocupam com as pessoas que têm fome em nossa cidade de São Paulo. E são muitas pessoas, grupos, paróquias, comunidades religiosas, associações, entidades, obras sociais da nossa Igreja e de outras Igrejas, religiões e instituições e, também, de quem não tem religião. Sim, há muitas pessoas sem religião que também se sensibilizam diante da fome dos outros. São Paulo foi sempre muito acolhedora e generosa para com os necessitados. E ainda resta um mar de necessidades em nossa cidade, tão rica e tão pobre, ao mesmo tempo.

Diante disso, é absurda e chocante a iniciativa de um projeto de lei que queria penalizar a quem se preocupa com os famintos e distribui alimentos aos pobres nas ruas e praças de São Paulo. Isso iria contra toda sensibilidade humana e o bom senso, e não merece o apoio de quem tem senso de dignidade e humanidade. Da mesma forma, burocratizar um gesto tão humano e tão belo, a ponto de torná-lo quase impossível, acabaria sendo o mesmo que inibi-lo. Melhor seria que se apresentassem projetos de lei para colocar à disposição da população com fome numerosos locais bem distribuídos pela cidade, nos quais as pessoas pudessem receber alimentos com dignidade e segurança.

A situação dos numerosos moradores de rua preocupa e deve preocupar a todos. Não é aceitável que nossa cidade não encontre uma solução humana, justa e digna para esse problema gritante. E isso sem falar das extensas periferias de nossa metrópole, onde vivem centenas de milhares de pessoas em condições extremas de sobrevivência. O problema é de toda a cidade e, sendo assim, é também um problema político, que requer um verdadeiro entendimento entre todas as forças políticas da cidade. O quer não se pode é proibir alguém de dar alimento ao próximo faminto.

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