Artigo

A superação da fome - Mt 14,13-21

A Campanha da Fraternidade 2023 convida-nos a tratarmos do sério problema da fome. O lema é a ordem de Jesus aos discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16). Por isso, somos convidados a mergulhar no relato de Mt 14,13-21, texto iluminador e inspirador de nossas práticas.

Nos Evangelhos encontram-se seis relatos de “multiplicação” de pães: dois em Mt (14,13-21; 15,32-39); dois em Mc (6,30-44; 8,1-10); um em Lc (9,10-17) e um em Jo (6,1-15). “Seguramente, tratou-se de um único fato que, de modo repetido e variado, foi narrado e interpretado”. A linguagem de Jesus nestes relatos é encontrada também na Última Ceia (Mt 26,26). Além disto, a ação de Jesus, como um todo, atualiza a missão profética de Eliseu (2Rs 4,42-44), encontrando nela um paralelo.

Diante da decapitação de João Batista, o relato inicia dizendo que Jesus está em perigo. Por isso, “ouvindo” essa notícia, Jesus “partiu dali, de barco, para um lugar deserto, afastado” (v.13), um lugar sem valor para a elite, mas de importância central para o projeto do Reino. Mateus realça o impacto da morte de João sobre Jesus. O v.15a dá a entender que Jesus fora sozinho, pois os discípulos chegaram posteriormente junto dele: “Chegada a tarde, aproximaram-se dele os seus discípulos”. O “lugar deserto, afastado” lembra a caminhada do êxodo (Ex 13,17-18,27; Nm 10,11-36,13), em busca de um projeto alternativo. Neste espaço, afastado e deserto, Jesus vai também propor um projeto alternativo.

O v.13b informa que as multidões foram “a pé” ao encontro de Jesus. Significa que eram pobres e, distintamente da elite, colocavam-se abertas ao ensinamento/ministério de Jesus. O v.14 descreve que Jesus, ao chegar, “de barco”, “desembarcou”, “viu uma grande multidão” e sentiu “compaixão”, pois era um povo doente e com fome. Sua compaixão o levou a duas atitudes básicas: a primeira foi de “curar os doentes” (v.14b), sem o texto dar outra informação; a segunda foi de saciar a fome do povo (v.16-21).

O texto ressalta o problema da fome, pois este, de certa forma e consequentemente, envolve também as doenças. Diante da questão, mais do que qualquer coisa, o texto propõe um programa de vida. Os discípulos são portadores da proposta que reinava na sociedade desde tempos remotos: a solução da fome estava em “comprar” mantimentos. Lembramos, por exemplo, o que Jacó disse a seus filhos: “Eu soube que há mantimento para vender no Egito. Descei e comprai mantimento para nós a fim de que vivamos e não morramos’. Dez dos irmãos de José desceram ao Egito para comprar trigo” (Gn 42,2-3). A relação existente é de compra e venda, implicando em ter dinheiro para tal operação.

É isso que os discípulos veem acontecer na sociedade e, portanto, propõem o mesmo a Jesus: “Despede as multidões para que vão aos povoados comprar alimento para si” (Mt 14,15). Com este pedido os discípulos:

a) não se envolvem na solução do problema da multidão, pois não se consideram responsáveis por ela;

b) não lhes interessa se a multidão tinha dinheiro ou não, se iria encontrar alimento para comprar ou não, se as pessoas iriam ter comida para saciar a fome ou não;

c) expressam completo descaso para com quem está passando necessidades;

d) justificam esta postura a Jesus por estarem em um “lugar deserto” e numa “hora avançada”.

Jesus não se deixa envolver pela postura dos discípulos. Com um olhar crítico e de compaixão, propõe-lhes outro caminho, não imaginado por eles, destacando-se alguns passos:

a) em primeiro lugar, Jesus diz aos discípulos que a solução deve ser encontrada ali mesmo, no próprio deserto e naquela hora avançada: “não é preciso ir embora” (v.16a);

b) Jesus rompe com a postura de descaso dos discípulos, envolvendo-os na solução do problema da fome e dizendo-lhes que eles mesmos deveriam “dar de comer à multidão” (v.16b);

c) a resposta dos discípulos apresenta-se como uma afirmação de que ali não é possível uma solução, pois dizem: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes” (v.17); isto seria insignificante para tamanha multidão;

d) Jesus, sabendo o que significa cinco pães e dois peixes, afirma-lhes que a solução está nas mãos deles, por isso pede-lhes que os tragam: “Trazei-os aqui” (v.18);

e) diante da mentalidade cristalizada nas pessoas e na sociedade de um modelo político-econômico de compra e venda, Jesus entende que se faz necessária uma nova consciência e uma nova organização social para que todos possam “comer pão sem escassez” (Dt 8,9), por isso mandou que “a multidão se assentasse na grama” (v.19a);

f) depois Jesus “tomou” os pães e os peixes, “elevou os olhos ao céu” e “os abençoou” (v.19b): trata-se do reconhecimento de que tudo é dom de Deus para o bem e para a vida de todas as pessoas; para isto ocorrer se faz necessária a bênção (eulogia), palavra boa, ou seja, uma nova organização capaz de proporcionar o acesso de todos ao pão e ao peixe de cada dia;

g) depois Jesus “partiu” os pães, “deu-os” aos discípulos e estes os distribuíram à multidão, sentada na relva (v.19b): Jesus usou do gesto de partir, quebrar, repartir e envolveu os discípulos para distribuir, rompendo com a lógica do comprar e vender do sistema de ontem e de hoje; para Jesus há solução e essa se encontra na construção de novas relações culturais, sociais, econômicas e políticas; herdeiro da teologia do êxodo (Ex 16,16), Jesus propõe a partilha como o caminho do Reino de Deus;

h) o v.20a relata o inimaginável para os discípulos: “todos comeram e ficaram saciados”, ou seja, todos comeram à vontade e ainda sobrou; aqueles que queriam “despedir as multidões”, pois não tinham outra alternativa a não ser aquela proposta pelo sistema vigente, veem em Jesus a indicação de uma solução que está na possibilidade de todos, basta fazer a opção por ela; além disto, “recolheram doze cestos cheios” (v.20b), significando que a proposta de Jesus, o Reino de Deus, garante vida e dignidade sempre e para todos.

Enquanto o banquete de Herodes condena à morte os profetas, o banquete de Jesus sacia a multidão dos pobres. Jesus, o novo Moisés, propõe novas relações, fundamentadas no princípio da partilha, da solidariedade, implicando uma reorganização da sociedade. Quando há o espírito de responsabilidade e de partilha, todos ficam satisfeitos. A primeira comunidade cristã vivenciava concretamente este projeto: “punham tudo em comum”, “dividiam” seus bens “entre todos, segundo a necessidade de cada um” (At 2,44-45); “ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum”, por isso, “não havia entre eles necessitado algum” (At 4,32b.34a).

Pe. Jair Carlesso

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