A
falta da justa medida: o DNA de nossa cultura.
Leonardo Boff
IHU-Unisinos, 10 Julho 2024
Para onde quer que dirijamos nosso
olhar, o que mais salta aos olhos é a falta de medida, o excesso, o exagero, a
ausência do caminho do meio, o nem demais e o nem de menos, o desequilíbrio em
praticamente em todos os campos.
A justa medida é testemunhada em todas
as grandes tradições éticas das culturas mundiais. No pórtico do grande templo
em Delfos estava escrito em letras garrafais: méden ágan, o que significa:
“nada de excesso”. O mesmo se via nos pórticos dos templos romanos: ne quid
nimis: “nada de menos nem demais”. A justa medida se opõe à toda ambição
exacerbada (hybris). Demanda o autocontrole, o senso do equilíbrio dinâmico e a
capacidade de impor limites a nossos impulsos. Ora, é exatamente o que nos
falta em nível mundial. A falta da justa medida pertence ao DNA de nossa
cultura hoje planetizada.
Isso se nota claramente no sistema
econômico-político-social-comunicacional predominante. A mais flagrante amostra
da falta da justa medida é o capitalismo. Lá onde se instala surge
imediatamente a desigualdade entre os donos do capital que tudo possuem e
decidem e os trabalhadores que apenas vendem suas capacidades, quer dizer, se
instala imediatamente a ruptura da justa medida. Os mantras do capitalismo em
suas várias versões são mantidos inalterados: a busca da ilimitada acumulação
para benefício individual ou corporativo, mesmo sabendo dos limites de nosso
planeta, seu motor é a concorrência sem qualquer laivo de cooperação, a
pilhagem dos bens e serviços da natureza sem tomar em conta a sustentabilidade
necessária, a flexibilização de todas as leis para escancarar todas as portas
para o processo de exploração e de enriquecimento, a pressão para criar o
Estado mínimo, pois é visto como empecilho à dinâmica da expansão do capital.
O efeito deste processo é aquilo que o
economista Eduardo Moreira, ex-banqueiro transformado num dos maiores
formuladores de consciência crítica de nosso país e o principal idealizador do
Instituto Conhecimento Liberta (ICL) oferecendo cerca de 270 cursos de
excelência nas mais variadas áreas do saber a um custo de um sanduíche, com
frequência de cerca de 100 mil seguidores: ”O 1% dos donos de terras concentram
mais de 50% das terras cultiváveis do país; quando consideramos o volume de
dinheiro, o 1% mais rico do mundo possui mais reservas acumuladas do que os 90%
mais pobres; uma verdadeira catástrofe social”. Este é um exemplo gritante de
nossa absoluta falta de medida.
Essa falta de medida caracteriza
igualmente as grandes mídias mundiais, seja escritas, sejam digitais, e a meia
dúzia de plataformas da internet (Google, Meta, Facebook, Instagram, TikTok, X,
YouTube e outras) nas mãos de um punhado de pessoas poderosíssimas.
A falta de medida revela-se
profundamente brutal na relação para com a natureza, desde séculos explorada e
nas últimas décadas devastada a tal ponto de alguns cientistas terem proposto a
inauguração de uma nova era geológica, o Antropoceno (o ser humano é o fator
principal da destruição da natureza), radicalizado no Necroceno (dizimação da
biodiversidade) e ultimamente no Piroceno (o aumento crescente dos grandes
incêndios) por quase todas as partes do planeta.
Talvez uma das maiores demonstrações da
falta da justa medida nos é dada pela mudança climática, já instalada a ponto
de ser considerada pelos grandes órgãos mundiais como irreversível. A emissão
de gases de efeito estufa, ao invés de diminuir, está aumentando; em razão da
crise energética, voltou-se ao uso de carvão, de petróleo e o gás, altamente
poluentes e ainda devido à insuficiência das energias alternativas. A mudança
climática não freada, acrescida com o aumento populacional, pode levar a um
impasse o futuro da vida humana e tornar o planeta inabitável.
Entre as muitas causas que nos levaram a
esse perigoso estágio é seguramente o rompimento da Matriz Relacional.
Olvidamos que todas as coisas são inter-relacionadas. Na linguagem poética do
Papa Francisco em sua encíclica de uma ecologia integral (Sobre o cuidado da
Casa Comum): “o sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o
pardal...significam que nenhuma criatura se basta a si mesma; elas só existem
na dependência de umas das outras, para se completarem mutuamente no serviço
uma das outras” (n. 85). Aqui aparece a justa medida natural, rompida pelas
ciências e pelos muitos saberes.
A modernidade se funda sobre a
atomização dos saberes, das coisas tidas sem um valor intrínseco e postas ao
desfrute dos seres humanos ou, na pior tendência, à acumulação sem limites de
bens meramente materiais. Assim surgiu o mundo das coisas; inclusive as mais
sagradas também órgãos humanos foram transformados em mercadoria a ser posta no
mercado e ganhar o seu devido preço, coisa já prenunciada por Marx em 1847 em
sua Miséria da filosofia e sistematizada em 1944 por Karl Polanyi na obra A grande
transformação.
Como sair desta enroscada de dimensões
trágicas? Não temos outra saída, se quisermos continuar sobre este planeta,
senão voltar à ética do cuidado de todas as coisas, de nossas vidas e
principalmente da justa medida. Ela e o cuidado poderão salvar o futuro de
nossa civilização e de nossa permanência na Terra.
Preocupado com esta questão máxima, de
vida e de morte, escrevi dois livros, fruto de vasta pesquisa transcultural. O
primeiro foi publicado em 2022. Intitula-se O pescador ambicioso e o peixe
encantado: a busca da justa medida. Nele, preferi o gênero narrativo com o uso
de contos e mitos ligados à justa medida. O segundo completa o primeiro, e
chama-se A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra, ambos pela
editora Vozes. Neste segundo, procurei de uma forma mais científica ir às
causas que nos levaram a olvidar a justa medida, exatamente a perda da Matriz
Relacional.
Por mais que nos esforcemos em crer que
só o retorno à justa medida e à ética do cuidado nos poderão salvar, sempre
fica angustiante pergunta: dada a universalização da grave crise existencial,
temos ainda tempo e sabedoria suficientes para operarmos esta conversão? A
esperança nunca morre e não nos deverá defraudar.