A falácia do aborto legal
Jornal o
São Paulo, Rodrigo
Pedroso, 19 de junho de 2024
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem se posicionado
seguidamente sobre o tema do aborto no Brasil, respondendo a ações a ele
endereçadas por grupos que alegam que a proibição do aborto seria
inconstitucional no Brasil. A mais recente dizia respeito a uma resolução do
Conselho Federal de Medicina sobre a realização do aborto, em casos previstos
por lei, quando o embrião já tivesse mais de 22 semanas. Mas, o que diz
realmente a legislação brasileira, em seus vários níveis, sobre o direito à
vida do nascituro?
Apesar da insistência midiática, não há aborto
legal no Brasil. O que existe, na legislação federal, são as duas dirimentes
previstas no art. 128 do Código Penal: a do inciso I, que trata do dito aborto
“necessário”, previsão paradoxalmente desnecessária, pois o art. 24 da parte
geral do mesmo Código Penal já institui o estado de necessidade como excludente
para todo e qualquer crime; e a do inciso II, que abrange o aborto quando a
gravidez resulta de estupro. Repito: não há aborto legal, o que há é aborto não
penalizado ou aborto sem pena. Há também o caso contemplado pelo julgamento da
ADPF 54, em que o STF excluiu a tipicidade do abortamento de feto anencefálico,
porém, neste último caso, é mais correto falar em aborto jurisprudencial ou
aborto judiciário do que em aborto legal.
Não obstante, o direito penal é apenas uma parte do
direito e uma parte sujeita ao princípio da fragmentariedade, a ultima
ratio do direito. A verdade está sempre no todo, pois texto sem
contexto é pretexto: a determinação do direito, concebido como ipsa res
justa, requer o conhecimento integral e a interpretação sistemática de suas
fontes.
Assim, pelo art. 2º do Código Civil, “a lei põe a
salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, reconhecendo que este tem
verdadeiros direitos subjetivos e não meras expectativas de direito e que,
portanto, o nascituro é pessoa não apenas no sentido objetivo ou ontológico,
como também no sentido de sujeito de direitos, personalidade esta sujeita a
condição resolutiva e que se torna definitiva com o nascimento com vida,
retroagindo à concepção. Houvesse aborto legal, os direitos do nascituro não
estariam, conforme o preceito legal, “a salvo, desde a concepção”. O art. 7º do
Estatuto da Criança e do Adolescente também consigna que a criança tem direito
à “efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento”, o que
obviamente não é compatível com o aborto. Aliás, só pode ter direito ao
nascimento a criança que ainda não nasceu.
Também o caput do art. 5º da
Constituição Federal (CF) proclama “a inviolabilidade do direito à vida”.
Alguém poderia objetar que esse direito concerne apenas “aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País”, como enuncia a letra do dispositivo. Isso
porque, se, por um lado, o nascituro não é estrangeiro, por outro, os
brasileiros o são por nascimento ou por naturalização e os nascituros, por
definição, são aqueles que ainda não nasceram. Estariam por isso os nascituros
excluídos da proteção constitucional? Ora, o caput do art. 5º
deve ser lido em consonância com o seu parágrafo 2º, que fixa dois importantes
elementos para a sua interpretação.
Em primeiro lugar, o § 2º do art. 5º da CF
determina que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”. Isso quer
dizer que o texto do próprio artigo 5º nunca pode ser interpretado para excluir
direitos, mas apenas para ampliá-los: em se tratando de direitos fundamentais e
liberdades públicas, deve-se optar sempre pela interpretação mais favorável ao
direito, no sentido do princípio favorabília amplianda, odiosa
restringenda. Destarte, assim como a menção “aos estrangeiros residentes no
País” não pode ser invocada para excluir do direito à vida os estrangeiros não
residentes, mas em trânsito pelo território nacional, tampouco justifica a
exclusão dos indivíduos já concebidos, mas que estão por nascer.
Em segundo lugar, o mesmo § 2º invoca para a
interpretação do art. 5º «os tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte». Ora, entre esses tratados encontra-se a
Convenção Americana dos Direitos Humanos, também chamada Pacto de São José da
Costa Rica (cidade em que foi assinada). Tal convenção foi ratificada pelo
Congresso Nacional do Brasil e promulgada pelo decreto n. 678, de 1992. Em seu
art. 4º, essa convenção estipula que o direito à vida deve ser protegido por
lei desde a concepção e, mais importante, em seu art. 3º reconhece a todo o
indivíduo o direito à personalidade jurídica, ou seja, o direito a ter
direitos.
Porém, mesmo que abstraíssemos o § 2º do art. 5º da
CF e considerássemos que a proteção constitucional da vida tivesse início no
nascimento, ainda assim o aborto seria uma fraude à Constituição, pois teria o
objetivo de impedir a aplicação do preceito constitucional, violando-o
obliquamente: para frustrar a proteção constitucional da vida humana, mata-se o
nascituro ainda no ventre.
Não obstante, é preciso ressaltar que, se o art.
188, II, do Código Civil, contempla o estado de necessidade como excludente
para a responsabilidade civil, como os arts. 24 e 128, I, do Código Penal, para
a responsabilidade penal, nem o Código Civil, nem o Estatuto da Criança e do
Adolescente, nem a Constituição Federal, nem a Convenção Americana dos Direitos
Humanos fazem qualquer ressalva para o aborto praticado quando a gestação
decorre de estupro. Portanto, a dirimente do art. 128, II, CP, apenas exclui a
responsabilidade penal do fato típico, sem impedir que instâncias independentes
do juízo criminal, como o Conselho Federal de Medicina, exerçam seu poder
normativo e disciplinar sobre o mesmo fato.